Se um dia um desconhecido lhe der beijinhos isso é: carinho!
No Metro, uma estação depois da minha entrou um rapaz, talvez tivesse trinta anos, com traços ligeiros de ser portador de Síndrome de Down. Cheirava a quem não toma banho vai para mais de um mês mas nem o cheiro pestilento lhe escondia as feições bonitas e uma forma de falar que deixava transparecer uma educação cuidada. De vez em quando deitava um olhar perdido para o fundo da carruagem e gritava um “olá, tá boa?” sabe-se lá para quem. Em hora de ponta o rapaz ficou com mais de um metro quadrado só para ele. Era olhado de lado por quem estava perto com o receio expresso na cara de ser alvo da saudação de quem sofre de alguma perturbação e que por isso, simplesmente por isso, tem uma potencial violência dentro de si pronta a explodir a qualquer momento.
Eu estava a ler e de vez em quando levantava os olhos para observar as reacções do rapaz e as dos outros. Pensei como se sentiria se tivesse capacidade de avaliar o medo que provocava na generalidade dos que ali estavam. Iria surpreender-se seguramente. Pensei na família, que triste ficaria sempre que se apercebia que aquele rapaz amedrontava os normais com quem contactava. Pensei que se fosse eu a estar no lugar do rapaz ou da sua família sofreria imenso com a reacção dos outros e tudo isto despertou em mim imensa compaixão e solidariedade.
A meio do percurso deixou cair um jornal – o Destak – e apanhou-o em seguida dando umas palmadinhas nas costas de uma rapariga que estava mais perto e que de vez em quando o olhava de soslaio para tentar perceber se corria perigo por se encontrar nas imediações. Ela fez de conta que nem sentiu aquelas pancadinhas desejosas de atenção que vinham acompanhadas de um “não faz mal, está tudo bem, eu já apanhei, não faz mesmo mal”. Chegada ao destino passei por ele quando me dirigi para a porta da carruagem. Disse-me o “olá, tá boa?” com que vinha saudando sabe-se lá quem. Não pude evitar sorrir-lhe depois daqueles meus pensamentos todos de que foi ele o protagonista. Prontos, foi o suficiente para despoletar uma reacção despropositada e hiper-carinhosa que consistiu num tímido abraço e numas beijocas depositadas no meu braço direito. O que faz um sorriso, pensei! Saí com uma despedida dele num sorriso rasgado: “até amanhã!” - até amanhã, respondi-lhe - e segui caminho interrogando-me sobre se tinha sentido o meu afecto ou se se tinha tratado de um impulso inusitado.
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